terça-feira, 7 de julho de 2015

A obra-prima de Bolaño

Por Júlia Martins


2666 é um livro para poucos. Não conheço muita gente que se aventuraria em uma obra de 850 páginas (mas para mim é só o aquecimento, pois Graça infinita, com suas mais de 1.000 páginas, está na fila). E apesar dos anos de leitura, esse foi o calhamaço mais extenso que me lembro de ter lido.

Mas vamos tratar de qualidade e não de quantidade. Essa obra é dividida em cinco partes, todas elas conversam entre si, e a última dá o desfecho da história. Desfecho é uma palavra um pouco inadequada na verdade, pois o que mais se sente nesse livro são os elementos que ficam abertos.

A primeira parte narra a história de alguns críticos literários que estão em busca de um escritor misterioso, chamado Benno von Archimboldi, o qual estudam e admiram profundamente. São três homens e uma mulher e, além de sua ligação literária, há um envolvimento sentimental entre eles, com um desfecho inesperado. Os estudiosos partem em busca de do escritor no México, na cidade de Santa Teresa, onde conhecem o protagonista da segunda parte.

Na parte seguinte, conhecemos a história de um professor de literatura, chamado Amalfitano, que mora em Santa Teresa (cidade onde são protagonizados muitos acontecimentos da narrativa e que se torna, ela mesma, uma personagem) com sua filha única. Essa parte é a mais maluca de todas. Além de narrar um pouco do passado do professor, conta seus devaneios sobre um livro de matemática que acaba dependurado no varal em um clima bem onírico e misterioso.

A terceira parte é sobre um jornalista americano que vai a Santa Teresa para escrever uma reportagem sobre uma luta de boxe na cidade e acaba se vendo envolvido com pessoas e histórias de assassinato que ocorrem no local.

A parte seguinte é o soco no estômago do livro. Ela narra os assassinatos que ocorrem em Santa Teresa (ficcionalização da Ciudad de Juarez, onde existe realmente uma terrível história de feminicídio que persiste há mais de vinte anos aos olhos das autoridades do país). Principalmente para mim, que sou mulher, foi uma leitura penosa, dolorida, que tive que dividir em doses homeopáticas. Mesmo assim, acho que é o coração do livro, pois essa experiência literária nos leva a desenvolver sentimentos elevados ao extremo, sensações que nunca experimentei na vida cotidiana e também traz algumas histórias permeadas entre os assassinatos que nos auxiliam a ter algumas ideias sobre a motivação e o cerne dessa história de terror.

Roberto Bolaño (Foto: estrelaselvagem.wordpress.com)
Quando li o livro, não sabia que essas histórias realmente haviam acontecido e acho que vale a pena conhecer um pouco mais sobre Ciudad Juarez antes de ler 2666. Fiquei com a sensação que o Bolaño ia solucionar o caso, mas sabendo que nem na vida real esse triste panorama teve um desfecho, entendo que o objetivo dele era outro. 

A última parte do livro é a história de Archimboldi, o escritor venerado pelos críticos da primeira parte. Aqui, Bolaño mostra toda sua maestria em criar histórias dentro de histórias, e mudar completamente o tipo de narrativa que passa do realismo bruto dos assassinatos para um ambiente fantástico da infância de Archimboldi com sua mãe caolha e seu pai perneta. Após a infância cheia de elementos mágicos que dá alento à leitura, a narrativa traça o caminho de Benno durante a segunda guerra mundial até se casar com Ingeborg e se tornar escritor. 

A parte final costura as demais histórias, mas não sem deixar muitas perguntas por responder. Como podemos ler na orelha do livro, a sensação que o livro dá é que cada frase traz uma informação importante para o desfecho da história e nem tudo que se diz parece conectar com alguma coisa no final. Outro dia, um colega me disse que achava Allan Moore um grande escritor porque ele não subestima a inteligência do leitor e deixa um pouco das lacunas para serem desvendadas por ele. Acho que é exatamente isso que Bolaño busca em sua obra.

Acredito também que a sensação de uma história inacabada é o objetivo do autor, pois na vida real essa história nunca acabou; então a inquietude, o horror e o medo persistem. Terminei o livro pensando que tinha desperdiçado um mês de leituras com ele, porém, depois de refletir bastante sobre o tema, 2666 é uma obra inteligente e desafiadora, que merece a atenção de quem quer vivenciar algo inusitado, que nos tira do lugar comum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário