Por Júlia Martins
2666 é
um livro para poucos. Não conheço muita gente que se aventuraria em uma obra de
850 páginas (mas para mim é só o aquecimento, pois Graça infinita, com suas mais de 1.000 páginas, está na fila). E
apesar dos anos de leitura, esse foi o calhamaço mais extenso que me lembro de
ter lido.
Mas
vamos tratar de qualidade e não de quantidade. Essa obra é dividida em cinco
partes, todas elas conversam entre si, e a última dá o desfecho da história.
Desfecho é uma palavra um pouco inadequada na verdade, pois o que mais se sente
nesse livro são os elementos que ficam abertos.
A
primeira parte narra a história de alguns críticos literários que estão em
busca de um escritor misterioso, chamado Benno von Archimboldi, o qual estudam
e admiram profundamente. São três homens e uma mulher e, além de sua ligação
literária, há um envolvimento sentimental entre eles, com um desfecho
inesperado. Os estudiosos partem em busca de do escritor no México, na cidade
de Santa Teresa, onde conhecem o protagonista da segunda parte.
Na
parte seguinte, conhecemos a história de um professor de literatura, chamado
Amalfitano, que mora em Santa Teresa (cidade onde são protagonizados muitos
acontecimentos da narrativa e que se torna, ela mesma, uma personagem) com sua
filha única. Essa parte é a mais maluca de todas. Além de narrar um pouco do
passado do professor, conta seus devaneios sobre um livro de matemática que
acaba dependurado no varal em um clima bem onírico e misterioso.
A
terceira parte é sobre um jornalista americano que vai a Santa Teresa para
escrever uma reportagem sobre uma luta de boxe na cidade e acaba se vendo
envolvido com pessoas e histórias de assassinato que ocorrem no local.
A parte
seguinte é o soco no estômago do livro. Ela narra os assassinatos que ocorrem em
Santa Teresa (ficcionalização da Ciudad de Juarez, onde existe realmente uma terrível
história de feminicídio que persiste há mais de vinte anos aos olhos das
autoridades do país). Principalmente para mim, que sou mulher, foi uma leitura
penosa, dolorida, que tive que dividir em doses homeopáticas. Mesmo assim, acho
que é o coração do livro, pois essa experiência literária nos leva a desenvolver
sentimentos elevados ao extremo, sensações que nunca experimentei na vida
cotidiana e também traz algumas histórias permeadas entre os assassinatos que
nos auxiliam a ter algumas ideias sobre a motivação e o cerne dessa história de
terror.
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Roberto Bolaño (Foto: estrelaselvagem.wordpress.com) |
Quando
li o livro, não sabia que essas histórias realmente haviam acontecido e acho
que vale a pena conhecer um pouco mais sobre Ciudad Juarez antes de ler 2666. Fiquei com a sensação que o Bolaño
ia solucionar o caso, mas sabendo que nem na vida real esse triste panorama
teve um desfecho, entendo que o objetivo dele era outro.
A
última parte do livro é a história de Archimboldi, o escritor venerado pelos
críticos da primeira parte. Aqui, Bolaño mostra toda sua maestria em criar
histórias dentro de histórias, e mudar completamente o tipo de narrativa que
passa do realismo bruto dos assassinatos para um ambiente fantástico da
infância de Archimboldi com sua mãe caolha e seu pai perneta. Após a infância
cheia de elementos mágicos que dá alento à leitura, a narrativa traça o caminho
de Benno durante a segunda guerra mundial até se casar com Ingeborg e se tornar
escritor.
A
parte final costura as demais histórias, mas não sem deixar muitas perguntas
por responder. Como podemos ler na orelha do livro, a sensação que o livro dá é
que cada frase traz uma informação importante para o desfecho da história e nem
tudo que se diz parece conectar com alguma coisa no final. Outro dia, um colega
me disse que achava Allan Moore um grande escritor porque ele não subestima a
inteligência do leitor e deixa um pouco das lacunas para serem desvendadas por
ele. Acho que é exatamente isso que Bolaño busca em sua obra.
Acredito
também que a sensação de uma história inacabada é o objetivo do autor, pois na
vida real essa história nunca acabou; então a inquietude, o horror e o medo
persistem. Terminei o livro pensando que tinha desperdiçado um mês de leituras
com ele, porém, depois de refletir bastante sobre o tema, 2666 é uma obra inteligente e desafiadora, que merece a atenção de
quem quer vivenciar algo inusitado, que nos tira do lugar comum.